Minha crônica :
Una mujer sola contra el mundo: Um pouco sobre Flora Tristán
Neuza Oliveira Marsicano
"Flora Tristán é uma personalidade excepcional do século 19, não só porque é mulher, mas também porque é uma mulher que resume todas as dificuldades ligadas ao destino das mulheres na primeira metade desse século e depois disso"
(Brigitte Krülic, Professora da Universidade de Paris-Nanterr)
Considerações Iniciais
Há uma tendência contemporânea do resgate da memória de Flora Tristán, que deixou um legado imenso de ativismo social e bases reflexivas filosóficas para um mundo mais fraterno: não apenas obras, como por exemplo, o romance escrito pelo Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa: O Paraíso na Outra Esquina; "Flora Tristán, Una Filósofa Social" de Conxa Llinas Carmona; a obra de Brigitte Krülic sobre Flora; como também em artigos na França e no Peru, além da tendência atual de seu nome estar em ruas, organizações e escolas de ajuda feminina mundo afora.
Quem foi Flora?
Após um período de pesquisas, leituras e reflexões, parecem inesgotáveis os debates sobre a autora, que, antes de tudo, um ser que carregou a bandeira da esperança. Nascida na França, em 7 de abril de 1803, seu pai era militar aristocrata peruano e sua mãe nascida na França, refugiada em Bilbao na época da Revolução Francesa.
Flora cresceu em um lar em Paris frequentado por personalidades influentes e intelectuais. Mas, como nem tudo são flores, apesar de seus pais terem se casado diante de um padre na Espanha, o procedimento não foi considerado válido para as autoridades e leis francesas, uma vez em que não haviam se casado no civil.
Sendo assim, ela não foi reconhecida como herdeira legal de seu pai, embora seu irmão fosse vice-rei do Peru. Daí uma sentença que poderia ser: uma mulher bastarda, depois, órfã, pobre...como teria educação? Mas o que superaria tudo era sua força interior: Flora era autodidata.
Casou-se aos 17 anos com seu patrão, um homem violento com o qual viveu durante 4 anos, e a deixou com dois filhos para criar e um no ventre. Essa adversidade, naquele período, fez com que fosse vista por sua mãe como uma prostituta, por ser uma mulher, e, sem rede de apoio familiar, precisou trabalhar muito para criar seus filhos. A caçula, Alina, veio a ser a mãe do artista francês Paul Gaugin.
A obra de Flora Tristán
Após vários trabalhos, Flora conseguiu um emprego com uma família inglesa com quem viajou pela Europa, visitando o Reino Unido pela primeira vez. Ao voltar para a França em 1839, logo em seguida, publica "Passeios em Londres", uma obra em que denunciou as desigualdades que presenciara, denunciando os aristocratas e o sistema capitalista por essa injustiça. Esse trabalho foi pedra fundamental do incipiente movimento socialista, porém, a sua bibliografia talvez não ficasse tão conhecida se não fosse uma viagem feita em 1833 ao Peru, cujo resultado mais relevante foi sua obra emblemática: “Peregrinações de Uma Pária”, de 1838. O motivo da viagem, de acordo com a própria Flora era: "ir para o Peru e refugiar-me no seio da minha família paterna, esperando encontrar lá uma posição que me fizesse voltar a entrar na sociedade".
Com seu espírito livre, Flora atravessou o oceano sozinha, acompanhada por 18 homens, ainda que fosse incomum e perigoso uma mulher viajar desacompanhada naquela época, sendo recebida na casa majestosa da família e desfrutando de muito conforto nos 8 meses em que esteve no Peru. Apesar disso, seu tio deixou claro que ainda a considerava uma bastarda e que ela não teria direito a nenhum bem da família.
É interessante notar que ela havia partido da França como uma lutadora e rebelde que sonhava em recuperar seu lugar perdido na aristocracia, porém, retornou ao país em 1834 já como uma revolucionária determinada a conquistar com a força das palavras um lugar justo para todos.
A visão de Flora sobre mulheres independentes era ambiciosa, e isso ficou claro já em seu primeiro livro, "Da Necessidade de Acolher Mulheres Estrangeiras", de 1835, que, de acordo com Krülic, nele, "ela imagina maneiras de ajudar as mulheres a viajar".
Deve-se salientar que Flora lutou por 14 anos pelo seu divórcio, e esse desafio inspirou a publicação de "Petição para a Reintegração do Divórcio", onde ela detalha a
luta por essa causa que encarou na vida pessoal, bem como pela abolição da pena de morte.
Entretanto, "Peregrinações de uma Pária" foi o texto que lhe abriu as portas em Paris. Porém, em Arequipa, a obra foi rechaçada com queima pública do livro, pois suas descrições do Peru em meados do século 19 ofenderam seus anfitriões no país. Anos depois, a obra foi reavaliada pelos historiadores peruanos e, nas primeiras décadas do século 20, foi acolhida como literatura peruana.
Enquanto ficava famosa, seu ex-marido, Chazal perseguiu-a nas ruas e a espancou. Além de ter tentado tomar a custódia dos filhos na Justiça. Alina precisou ficar escondida após ser vítima de um sequestro pelo próprio pai. Após Chazal ferir Flora gravemente com um tiro, é que ele foi preso. Enfim Flora e Alina estavam livres.
Alguns anos depois, Flora abordaria a questão do consentimento amoroso e da liberdade de movimento das mulheres no espaço público, algo arrojado para a época, assim como todas as suas ideias feministas e revolucionárias.
É de suma importância destacar que a escrita de Flora era concisa e concreta por uma razão prática: pelo fato de os trabalhadores terem uma jornada de trabalho muito longa, muitos não sabiam ler e precisavam ser abordados em uma linguagem simples que os incitasse à ação. Essa forma de pensar a estrutura textual foi inovadora para a época, e a diferenciou dos socialistas de sua época, incluindo Karl Marx, que se inspirou nela, mas nunca a citou.
A última viagem
Ela se autodeclarou "apóstola do Sindicato dos Trabalhadores", viajou pela França em 1844 com suas ideias libertárias e foi perseguida pela polícia da época. Esse fervor foi imensamente apreciado. Seis meses depois, morreu, em Bordeaux, incapaz de terminar seu tour pela França.
Seu túmulo resume muito bem o Zeitgeist de Flora Tristán, tão avançado e disruptivo: as pessoas por quem havia lutado gravaram: "Em memória da senhora Flora Tristán, autora de 'A União Trabalhadora', os trabalhadores gratos. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Solidariedade".
Como Flora Tristán via a América Latina?
Falar de Flora é entender a fusão de uma vida pessoal de uma mulher em uma época de extrema opressão feminina, adicionando sua condição de excluída: pela família, pelas condições financeiras e pela sociedade patriarcal. Apesar de um panorama desfavorável, ela resistiu e trouxe ideias inovadoras com seu olhar atendo e à frente de seu tempo, sempre driblando as adversidades em uma trajetória em que rumava a outros países por diversos motivos, mas sempre com algum fruto de ideias a serem disseminadas através de seus livros.
Em sua viagem da França, país em que morava, até a América Latina, onde sua família paterna vivia, não se sabendo claramente se tratar de uma busca de uma condição financeira menos atribulada ou se era uma busca de legitimidade mediante sua condição de bastarda, pois, o casamento de seus pais não foi reconhecido civilmente.
Fato é que, ao viajar, empunhava um diário, já se revelando escritora e anotando suas impressões sobre a América Latina. Esse recordatório de vida de Flora trouxe muitas revelações, segundo Amarante (2010), sobre a condição feminina dos lugares por onde ela passou como também sobre a vida social e política desses espaços.
Ela narrou o cotidiano das mulheres, dos escravos e senhores no Peru, país em que passa uma temporada junto aos familiares por parte de pai. Ela desembarca em uma nação libertada da Espanha há dez anos, porém, com uma conservação da estrutura feudal, com instabilidade política e as lutas pelo poder. As intrigas, revoltas militares, dissoluções de convenções constitucionais em proveito de certas classes, faziam parte do cotidiano dos peruanos (AMARANTE, 2010).
Havia no país a oposição entre dois grupos étnicos: os crioulos, donos de grandes plantações, elitizada, descendentes diretos dos conquistadores espanhóis, da qual a família de Flora fazia parte, e os negros, escravizados ou alforriados, que trabalhavam nessas plantações. Já os índios, por sua vez, eram poucos na parte costeira, embora bem representados em Arequipa, cidade dos Tristans, de acordo com a própria Flora. Cada olhar de Flora sobre tais grupos, embora ela tenha se aproximado mais de seu grupo de origem, auxilia na construção das imagens de Flora sobre diferentes opressões femininas, de acordo com as variações étnicas dentro de um sistema escravocrata.
Desde quando desembarcou, Flora observa e escreve sobre as mulheres em sua missão. Quando Flora considera o casamento é o único inferno que reconhece (AMARANTE, 2010) em sua jornada, é pela observação de uma submissão feminina sem fronteiras: “Aqui, pensei, as mulheres são, pois, pelo casamento, tão infelizes quanto na
França; também encontram, nesse elo, a opressão, e a inteligência com que Deus as dotou permanece inerte e estéril” (TRISTAN, 2000: 222 apud AMARANTE, 2010).
No Peru, observa o egoísmo da tia, e é implacável com ela, por ela oferecer aos pobres apenas boas palavras, que não aliviavam a miséria em que viviam, mesmo tendo imensa fortuna. Flora também observou a vida monástica em Arequipa: ela conhece dois conventos da ordem das carmelitas, onde percebe uma "aristocracia das riquezas", tão comum na sociedade peruana, ou seja, mais uma síntese de uma sociedade hierarquizada.
Na viagem, conhece a prima Manuela de Florez de Althaus, diferente de outros parentes pela cultura, generosidade e sensibilidade extraordinárias: falava e lia francês e não era superficial. Flora conhece, então, uma mulher feliz no casamento. Dentre outras mulheres retratadas por Flora, uma se destacada por estar atrelada à história do Peru: Pencha de Gamarra, e é notável a ela que, em um país onde poucas mulheres marcaram presença política, o destino da presidente pareceu fora do comum aos olhos de Flora, pois, desde 1823, Sr. Gamarra, presidente da República, governava sob as ordens de sua mulher, Senhora Pencha, que para a escritora era uma mulher forte, fora do comum e carismática.
Sobre os índios, Flora se refere a eles com respeito, descrevendo-os como humildes e silenciosos, suaves, sensíveis e extremamente respeitosos da natureza e da fauna. Porém, com seu olhar feminista, admira as ravanas, índias desagregadas que acompanhavam soldados, admirando-lhes a liberdade, apesar da miséria em que viviam. Porém, ao visitar as escravas nos engenhos de açúcar, fica chocada com a crueldade com que vê duas mulheres trancadas no calabouço por terem deixado suas crianças morrerem de fome. Em Lima, admira os costumes, trajes como também o caráter independente das mulheres (AMARANTE, 2010).
Apesar do olhar de uma europeia, os textos de Flora, de acordo com Amarante (2010), “constituem um testemunho fiel e corajoso do que foram dez meses passados num país marcado pelo despotismo e o fanatismo, pela miséria, corrupção e a hipocrisia que incidiam diretamente sobre a vida das mulheres”.
Tudo isso ajudou a autora, ao voltar para a França republicana, a entrar na luta social, pois, divulgou partes de seu diário através de artigos sobre a condição feminina no Peru, além de publicar duas petições: "Petição para o restabelecimento do divórcio" e "Petição para a abolição da pena de morte", listando injustiças, segundo Amarante (2010), incluindo a discriminação jurídica da mulher, algo que a fez sofrer consequências por boa parte de sua vida, dada a dificuldade de se divorciar e se livrar de um marido violento.
Já se passaram 179 anos desde sua morte, e o tema consentimento ainda é de amplo debate na sociedade democrática contemporânea. Flora questionou em que condições o 'sim" de uma mulher é dito, se realmente ela teria condições de dizer o "não", algo correlacionado, por exemplo, com o fato de ter se casado tão nova e sem direito à escolha.
Perseguida, pária, quase morta pelo marido. Um quadro desfavorável, mas ela resistiu como uma flor que brota no asfalto. Desenvolveu o pensamento feminino inovador, de vanguarda, questionador de bases sociais injustas e opressoras.
A professora de Sociologia, Milka Rezende pontua: "...são estruturais, históricas, político-institucionais e culturais. O papel da mulher foi por muito tempo limitado ao ambiente doméstico, que, por sua vez, era uma propriedade de domínio particular que não estava sujeita à mesma legislação dos ambientes públicos”.
Segundo a autora, a mulher era vista como uma propriedade particular, negado seu direito à vontade própria e sem direito à cidadania forjada nos espaços públicos, e, portanto, o sufrágio feminino e os direitos civis para mulheres são conquistas recentes em muitos países e ainda não completamente efetivadas em nenhum lugar do mundo.
Em razão desse panorama, a centelha que Flora acendeu no mundo, e iluminou vários caminhos para nós mulheres é extraordinariamente universal e acolhe os anseios de mulheres de todo o planeta.
Caminhando para o final desse breve relato sobre a autora, vale citar um excerto, na verdade o início da primeira nota de orelha do livro “Flora Tristán: Uma Mujer Sola Contra el Mundo SANCHEZ, 1992):
“Para el mundo ocidental Flora Tristán (1803-1844) es essa precusora de las organizaciones obreras de la emancipacióm de la mujer y de muchas causas justas.”
Traduzindo: “Para o mundo ocidental, Flora Tristán (1803-1844) é uma precusora das organizações operárias pela emancipação da mulher e de muitas causas justas.” E chama atenção que Sanchez (1992) fala de Flora com o verbo no tempo presente, ou seja, seu espírito e seu legado permanecem para o mundo.
Ademais, ela deve sempre ser lembrada como uma mulher de causas as quais até o momento presente reverberam em debates sobre igualdade e oportunidade para mulheres: em um momento em que as novas gerações lutam pela ampliação do lugar da mulher no mundo e por seus direitos mais fundamentais, ela é uma inspiração para a resistência contra o patriarcado, deixando um legado de obras fundamentalmente
históricas e também sua própria biografia para que o despertar das mulheres possa ser potencializado.
Referências Bibliográficas
AMARANTE, Maria Inês. O olhar de Flora Tristán sobre a América Latina: Deslocamentos, descobertas e leituras da condição feminina. Revista Fazendo Gênero (9): Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Santa Catarina: UFSC, 2010.
REZENDE, Milka de Oliveira. Violência contra a Mulher. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/violencia-contra-a-mulher.htm>. Acesso em: 29 jun. 2023.
SANCHEZ, Luis Alberto. Flora Tristán: Uma Mujer Sola Contra el Mundo. Caracas: Fundacion Biblioteca Ayacucho, 1992. VENTURA, Dalia. Flora Tristán: A Vida Extraordinária da Sindicalista Feminista que Inspirou até Karl Marx. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-63614378. Acesso em: 15 jun. 2023.